Tragédia anunciada
Assassinatos de Dom e Bruno escancaram violência, mas não são casos isolados
por Larissa Gould
No início de junho, no quinto dia, Dom Philips, correspondente do The Guardian, e Bruno Araújo Pereira, indigenista licenciado da Funai, partiram da comunidade ribeirinha de São Rafael rumo à cidade de Atalaia do Norte (AM). Foi a última vez que foram vistos com vida.
Dom trabalhava na obra Como Salvar a Amazônia? e Bruno o auxiliava com os personagens: lideranças indígenas e ribeirinhos. Do desaparecimento até a confirmação de suas mortes, em 18 e 17 de junho, respectivamente, foram dias de angústia e revolta para familiares, amigos e defensores dos direitos humanos.
Dom e Bruno foram perseguidos enquanto navegavam pelo rio Itaquaí, assassinados a tiros, tiveram seus corpos esquartejados, queimados e enterrados. A motivação do crime? A tentativa de Bruno de barrar o avanço da pesca criminosa na terra indígena do Vale do Javari.
O brutal assassinado do indigenista e do jornalista escancararam a violência contra ativistas e comunicadores no país, mas não são casos isolados. O Brasil é o quarto país do mundo que mais mata defensores de direitos humanos e ativistas ambientais, de acordo com a organização internacional Global Witness, e era o sexto mais perigoso para jornalistas, como denunciou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2019, atrás de países como Síria e Iraque.
De lá para cá, pouco ou quase nada mudou. De acordo com o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), em 2022, o Brasil era o 110º colocado, entre 180 países. Atrás de países como Ucrânia (106º) e Angola (99º).
Mesmo sendo conhecido mundialmente como um país pacífico, o número de mortes de profissionais de comunicação e ativistas colocam o Brasil no patamar de países em guerra. Dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mostram que, entre 1995 e 2018, ocorreram 64 assassinatos. O estado onde mais jornalistas foram assassinados foi o Rio de Janeiro (CNMP), e a região da Amazônia foi onde mais morreram ativistas (Global Witness). Em comum? Seja a guerra às drogas, ou contra garimpos e madeireiras ilegais, ambas as regiões podem ser caracterizadas como áreas de conflito.
O jornalismo de interesse social é fundamental para a democracia plena, e é ainda mais importante nas chamadas áreas de conflitos, em especial as afastadas dos grandes centros econômicos, que historicamente são negligenciadas pelo poder público. Wilson Reis, presidente do Sindicato do Jornalistas Profissionais no Estado do Amazonas (SJPAM), denuncia como a insuficiência do poder público é uma das responsáveis pela situação na região: “A morte de Dom e Bruno foi consequência da ausência de proteção do Estado e do estímulo à invasão e saque das áreas indígenas por parte do próprio governo. Isso tudo se soma e colabora para o cenário de insegurança da cobertura jornalística na Amazônia”.
E, se quase nada mudou, podemos dizer que o que mudou foi para pior. No Brasil, o presidente da República, Jair Bolsonaro, lidera o ranking de ataques a jornalistas, de acordo com os últimos três relatórios de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
A violência contra jornalistas e contra a imprensa aumentou vertiginosamente: em 2019, o número de casos teve um aumento de 54,07%, em 2020, de 105,77%, mantendo-se em uma estabilidade perturbadora. Segundo o documento de 2021, “a continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República.”
Esses ataques fizeram, inclusive, com que o presidente fosse condenado por danos morais à categoria, em ação movida pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP). (veja mais na página 4) E, com o aumento dos números de agressões aos profissionais por motivações políticas e a preocupação com o período eleitoral que está por vir e suas consequências para a categoria, o SJSP lançou, em abril, o Pacto pelo Fim da Violência contra Jornalistas e em Defesa da Liberdade de Imprensa. O documento já foi assinado por mais de 50 pré-candidatos às eleições proporcionais no estado.
Mas os ataques não são só ao jornalismo. Reis enaltece que a situação de risco na região amazônica é uma combinação entre o estímulo à violência propagada por Bolsonaro e o desmonte de órgãos como a Funai e outros: “Foram desmontados ou estão em processo de desmonte, por meio da redução de recursos para esses órgãos, na precarização e falta de concursos públicos, inclusive na própria polícia de fronteira”.
“Ser jornalista em locais de conflitos exige uma postura crítica”
Se a vida não está fácil para os jornalistas brasileiros, para aqueles que atuam fora dos grandes centros econômicos a situação é ainda mais grave. Sem a estrutura dos grandes centros, esses locais contam com correspondentes dos grandes veículos. Mas a imprensa local e as chamadas mídias alternativas, com recursos e condições financeiras limitadas, têm profissionais sem vínculo empregatício e quaisquer direitos assegurados.
Cícero Pedrosa Neto é repórter da agência Amazônia Real desde 2018 e cobre meio-ambiente, impactos socioambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Para ele, o jornalismo só pode ser considerado como tal se exercer o interesse social: “Sobretudo em se tratando de locais como a Amazônia. Não há nada mais urgente do que cobrir estes cenários. Ser jornalista em locais de conflitos exige uma postura crítica”.
Pedrosa já foi expulso de uma cidade paraense chamada Itaituba, na região do Tapajós, enquanto gravava um episódio de podcast para a Latino USA, da norte-americana NPR, por um madeireiro: “Ele me disse que jornalistas não eram bem-vindos na cidade e que eu saísse dali o quanto antes, se eu não quisesse ‘que minha mãe anoitecesse chorando por ter perdido um filho’”.
Carlos Madeiro é jornalista do UOL desde 2009 e atualmente atua como colunista. Hoje trabalha mais de casa, e por isso se sente mais seguro, mas já passou por apuros. Madeiro lembra do episódio do confronto na cidade de Viana, no Maranhão, em 2017, quando o indígena Aldelir Ribeiro teve as mãos decepadas a golpes de facão em um confronto: “A gente não sabia o que ia encontrar, a gente foi lá e adentrou uma área bem perigosa”. Nessa ocasião, a empresa custeou a viagem e o seguro obrigatório. Lá, de acordo com o profissional, cabe ao repórter saber onde é seguro ou não.
No entanto, nunca chegou a ser ameaçado de forma direta. Mesmo assim, Madeiro, que é pernambucano, mas vive em Alagoas, conta que já recebeu muitas intimidações de grupos da elite política e econômica: “Esses grupos se misturam e tendem a fazer com que você tenha medo de falar dessas coisas. E, à medida que você tenta, se não tiver um suporte, se expõe”. Para ele, jornalistas de veículos menores são os que mais sofrem: “matam os pequenos para calar aquela localidade. A elite não se conforma em ver pessoas botando o dedo em coisas já estabelecidas”. Ele mesmo admite que já desistiu de cobrir determinadas pautas por serem perigosas. No caso do UOL, a própria empresa orienta os profissionais a não se exporem a riscos.
Situação complicada, já que, para Pedrosa, os jornalistas que trabalham na Amazônia não estão nunca completamente seguros: “Isso inclui desde os riscos diretos à sua integridade física até os perigos que a presença de uma equipe de jornalismo em campo pode representar para as fontes”. O jornalista ressalta que, por maior que seja o risco a que os profissionais de comunicação se exponham, não se compara ao perigo a que uma fonte em situação de conflito está sujeita: “Justamente por isso é preciso sempre avaliar as melhores estratégias para a realização das pautas e, em hipótese alguma, deixar de considerar as ameaças a que estão expostas as pessoas ouvidas nas reportagens”.
“Fundamental para estabelecer a democracia de um país de todos é contar a história de todos”
Para Madeiro, os desafios da cobertura nas áreas de conflitos começam justamente por esse discernimento de entender quais são as áreas mais ou menos perigosas, responsabilidade que ele acredita ficar a cargo dos profissionais. Outro ponto é a escolha das fontes: “Quem buscar? Quais são as fontes confiáveis? Cubro muitos conflitos agrários e as fontes são muito difíceis de acessar. É uma cobertura sempre muito difícil”. Pedrosa elenca ainda outros: “Vão desde a questão da logística, das distâncias continentais da Amazônia até a falta de comunicação”. O jornalista frisa, no entanto, que a ausência de proteção nesses lugares é uma decisão política que impacta as regiões: “São locais onde a polícia não chega, onde o Estado é mínimo e não tem cobertura de fato. O porquê de esses estados não terem proteção maior é uma questão política”.
Tudo isso faz com que o jornalismo nessas localidades seja ainda mais urgente e necessário. Mas, como se não bastassem todos os riscos, os profissionais ainda enfrentam a barreira do capitalismo de plataforma, como explica Madeiro: “A gente faz histórias que, muitas vezes, não geram repercussão e essa é uma cobrança de todo site, mas faz um esforço de sempre emplacar. Fundamental para estabelecer a democracia de um país é contar a história de todos”.
“As pressões são maiores porque nossas vidas estão implicadas nesta região”
Para Pedrosa, outro ponto a ser considerado é a especificidade de quem é jornalista da e na Amazônia: “Os riscos são outros e bem mais presentes do que para uma equipe de fora que estará por um período na região e logo retornará para sua casa a milhares de quilômetros dali. No nosso caso, amazônidas, não vamos tão longe e, muitas vezes, temos parentes nas regiões onde estão ocorrendo os conflitos. As pressões são maiores porque nossas vidas estão implicadas nesta região. Além dos riscos compartilhamos também símbolos”.
Wilson Reis credita à queda do impresso o enfraquecimento da imprensa na região amazônica. Por lá, o sindicato enfrenta uma grande dificuldade para representar os profissionais, já que muitos deles são freelancers e as empresas se omitem de suas responsabilidades.
Essa característica, como explica Reis, dificulta também a atuação sindical: “Vivemos uma situação de precarização que só avançou e as empresas contratam quando querem uma pauta específica. Há a necessidade de que haja uma orientação [sobre a região] primeiro da empresa, que está pagando o contrato”. O dirigente explica que o sindicato sequer fica sabendo das coberturas, ou só toma conhecimento depois que os problemas já aconteceram, mas mantém contato com as empresas a fim de que se responsabilizem pelos profissionais.
“A gente vive um refluxo [dos direitos trabalhistas] muito grande”
Reis denuncia que a atividade sindical e os trabalhadores estão sob ataque desde o golpe contra a ex-presidenta Dilma em 2016. O presidente do SJPAM aponta que, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, havia se estabelecido condições para as entidades sindicais e os direitos dos trabalhadores avançarem, mas que, “agora, a gente vive um refluxo muito grande”. O grande marco para o sindicalista foi a Reforma Trabalhista, aprovada no governo ilegítimo de Michel Temer (MDB).
“Foi estarrecedor”
“Uma sensação terrível. Não os conhecia, mas foi estarrecedor. Teve a angústia da espera, mas obviamente a gente sabia que aquilo significava morte”. Foi assim que Carlos Madeiro recebeu a notícia da morte de Bruno e Dom. Para ele, um do motivos foi a empatia pela situação: “Várias vezes eu fiz coisas parecidas, né?”.
Umas das linhas de investigação defende que a função jornalística de Dom não está atrelada ao motivo de sua morte, e que poderia ter sido um “efeito colateral” do assassinato de Bruno, ou, como o próprio presidente Bolsonaro defendeu, que Dom seria o culpado por estar em uma região de alto risco. Para Madeiro, isso não condiz com a realidade: “Bruno indicou a pesca ilegal e o Dom fotografou. Então, sim, esse crime tem tudo a ver com jornalismo. Eles sabiam quem estavam matando. Sabiam que era um jornalista inglês. E não queriam que a informação saísse dali”. O jornalista espera que, desta tragédia, saia pelo menos um efeito prático: o aumento de proteção nestas regiões.
Infelizmente, essa não parece ser a realidade
A região de Atalaia do Norte é uma região de tríplice fronteira. Reis aponta que a atividade do narcotráfico na localidade consegue interferir nas comunidades ribeirinhas e as autoridades, que deveriam atuar na defesa da soberania do país e na defesa das comunidades, “inexistem, se fazem ausentes e, onde existem, são muito falhas. Com isso, a gente vê o crescimento das atividades ilegais na região”. Tudo isso não só não é combatido como é estimulado pelo governo federal.
Essa também é a impressão de Madeiro: “A melhor coisa que o presidente poderia fazer é não falar as bobagens que fala de jornalistas e do jornalismo. Eu sempre senti, até esse governo, que, se acontecesse alguma coisa, teria acolhida dos órgãos públicos. Hoje é ao contrário, não temos como recorrer e, se recorrer, como no caso do Dom, ele [Bolsonaro] coloca a vítima como culpada”.
Neste sentido, o Sindicato dos Jornalistas do AM se reuniu, no dia 14 de junho, com o superintendente regional substituto da Polícia Federal (PF) Thiago Hauptmann Borelli para tratar da importância da atuação dos jornalistas e a segurança à cobertura jornalística na Amazônia. Reis acredita, no entanto, que as medidas apresentadas pelo Estado são insuficientes: “Nada mudou até agora”.
Para Reis, não há solução com esse governo: “Estamos em uma encruzilhada, apostando em um novo governo que possa abrir espaço para que a nossa construção sindical e trabalhista avance, levando em conta as especificidades de cada região”.
Fonte: Unidade – Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo