O neoliberalismo e seus bodes expiatórios
Marcelo Seráfico
Como entender a atitude de Arthur Lira, e do grupo por ele liderado, para aprovar a PEC do Bolsa Família, proposta pelo governo eleito?
De modo mais imediato, talvez a resposta seja a de qualificá-la como uma espécie de negociação espúria com vistas a aprisionar o governo Lula/Alckmin no cativeiro do Centrão.
A decisão do STF de considerar inconstitucional o “orçamento secreto” e do Ministro Gilmar Mendes em excluir do “teto de gastos” o financiamento do Bolsa Família, puseram fim ao que, mal comparando, pode ser visto como uma tentativa de sequestro do Poder Executivo pelo fisiologismo de um grupo de legisladores.
Mas há algo mais nessa história.
A atitude de Lira e dos que ele representa pode ser vista como um atestado de que segmentos do Estado – que incluem especialmente o poder legislativo – buscam manter e aprofundar a ruptura com a sociedade civil.
Essa ruptura vem se dando de forma intensiva desde a ditadura militar. A instauração da Nova República, em 1985, foi um momento em que se buscou alguma rearticulação, expressa nas conquistas da Constituição Cidadã, em 1988.
A gravíssima crise econômica de então e a necessidade de, em superando-a, também redemocratizar a sociedade e o Estado, punham um desafio de proporções colossais: romper ou minimizar os interesses dos setores que se beneficiaram da ditadura e da crise econômica, na formulação e execução das políticas públicas. Isso significava romper com o neoliberalismo que, à sua vez, se revigorara em 1989, quando se forjou o Consenso de Washington.
Se para esses setores empenhados na construção de uma república de fato nova se impunha o dever de democratizar e recuperar o Estado nacional como centro decisório dos processos econômicos do país, para outros, que prosperaram com a ditadura, o que importava era manter o Estado nacional refém da dinâmica do capitalismo transnacional.
Sob o manto fúnebre do neoliberalismo, o país continuou atado aos imperativos das finanças globais, dos setores econômicos cuja renda deriva das exportações e das elites intelectuais que formulam as orientações político-ideológicas da subordinação.
A grana continuou a destruir mais do que construir coisas belas. Mas foram estas as alardeadas aos quatro cantos para louvar o sentido civilizador do capitalismo neoliberal. A destruição foi associada, quando oportuno, a governos que, mesmo timidamente, quiseram maquear a destruição.
Não há soma zero em política.
A demonização e a liquidação das experiências socialistas e a manutenção e agravamento do neoliberalismo produziram um mundo distópico, soldado ao presente.
A ascensão da extrema direita e o desnorteamento da esquerda são dois subprodutos desse cenário.
A Nova República acabou em 2016, com o golpe jurídico-parlamentar num governo cambaliante. Golpe sucedido da construção da Ponte para o Futuro, que nos remeteu a um período pré-1943, pois sepultou os direitos trabalhistas. Diante do avanço da catástrofe social, as forças ordenadoras da tragédia precisavam impedir reversões, por menores que fossem. Lula foi impedido de concorrer às eleições de 2018.
Mas essas forças haviam atingido grau máximo de desconexão com a maior parte da sociedade nacional. Não dispunham de nenhuma alternativa conhecida e legítima para continuar seu projeto de “destruição criativa”. Abriu-se espaço para a novidade.
Bolsonaro e o bolsonarismo emergem desse contexto. A grande surpresa foi o grau de irracionalidade e a impossibilidade de controle sobre essa personagem caótica, dos setores que produziram o caos.
Não era absoluta a identidade de interesses entre o neoliberalismo e o extremismo de direita que, histericamente, reagia à catástrofe social.
Mas o país deu vários passos rumo à liquidação.
Agora, qual é o desafio?
Há três camadas de interesse na sociedade brasileira: uma busca, desesperadamente, restaurar algum sentido à própria ideia de país; outra pretende mergulhar o país, ainda mais, numa viagem rumo ao século XIX; e outra se empenha em controlar as condições necessárias para a preservação de interesses específicos relativos à acumulação de capital em escala mundial e à acumulação de poder e riqueza mais ou menos paroquial.
O Centrão é o colchão sobre o qual repousam os bárbaros-civilizados da Faria Lima, de Wall Street, da City… mas também de Goiás, do Mato Grosso, de Santa Catarina, do Amazonas etc. Lira e o Centrão são o bode expiatório, o louco, o bêbado ao qual se atribuem todos os descaminhos da República, são só uma parte desse amplo processo de descolamento das instituições nacionais da maior parte da sociedade nacional.
Marcelo Seráfico – Sociólogo e professor do departamento de Ciências Sociais da UFAM