Jornalismo digital e outros varejos

* Por Aldísio Filgueiras

O jornalismo digital, tema desta II Semana de Comunicação da Fametro, não é, definitivamente, uma questão jornalística, senão como notícia; no Amazonas ou em qualquer lugar do planeta onde uma bateria alimentada por energia solar ou eólica permita plugar um notebook ou um telefone celular. Notícia, porque o qualificativo “digital” amplifica e intensifica o alcance do substantivo jornalismo, e merece o destaque; e porque esses novos valores agregados pelas novas tecnologias ao processo de comunicação tem um impacto significativo no mercado da informação. Já vimos isso antes. E é disso, enfim, que se deve tratar: uma questão de logística de venda do produto do jornalismo, estratégias de venda e de conquista de audiência, não propriamente do jornalismo.

As novas tecnologias impactam o processo de produção da informação das empresas, que precisam se adequar a essa novidade da economia do capitalismo tardio, que alguns identificam como era pós-industrial (pois não se realiza no “chão da fábrica”); de pós-capitalismo que não me parece muito correto, pois para ser pós o capitalismo precisaria estar superado, o que não e verdade, ele apenas tentar administrar uma nova crise de investimento do capital acumulado ou de pós-modernismo, outra expressão controversa, oportuna para a camuflagem da ignorância de identificar na exaustão dos processos e métodos anteriormente produtivos (o fordismo, por exemplo) o que pode ser ou gerar o realmente novo nas artes, no jornalismo, na engenharia, na arquitetura, no urbanismo e todo os outros comprometimentos com que as sociedades contemporâneas dessas novidades estão imbricadas.

O “jornalismo digital” dessa bandeira só pode ser uma questão de reengenharia das empresas de comunicação diretamente afetadas pela necessidade, cada vez mais urgente, principalmente no caso do Amazonas, criada pelas oportunidades abertas pela tecnologia digital. Esse viés do problema não pode mais ser escamoteado em apelos do tipo que estão no anúncio desta II Semana de Comunicação, centrados nas “nas habilidades e competências necessárias” dos jornalistas e/ou comunicadores como relações públicas, publicitários, designers e fashionistas emergentes de todas as tendências. Os taxistas, neste momento, estão em guerra com o Uber. E nem se trata, na realidade, senão de uma questão de legislação, menos do que a novidade de um aplicativo. O Uber, da mesma maneira, sequer se enquadra na pauta da mobilidade urbana, como pretendeu, equivocadamente, a Universidade Federal do Amazonas ao convocar um seminário para debater especificamente esse assunto.

Habilidades e competências exigem-se de artesãos, sapateiros, pedreiros, office boys, flanelinhas, balconistas, corretores de imóveis e vendedores de carros usados, não de jornalistas. Não há dúvida de que jornalistas precisam saber usar um computador, um smartphone, para operar o Instagram, o Faceboook, o WhatsApp; não só os jornalistas como todas e todos que investem o seu tempo nas empoderadas redes sociais de fofocas. Para isso, no entanto, basta dominar uma velha habilidade: a datilografia, cujo codinome, hoje, é digitalização. O computador tem muito mais recursos do que a minha velha e querida Olivetti Lettera 22, portátil, mas isso não muda o processo de datilografar, mesmo que ele se chame agora digitalização. O leproso é hanseniano, mas a lepra continua a mesma e reincidente. A realidade não é uma questão de nomenclatura. A mentira agora é Fake News, mas ambas têm as pernas curtas.

Jornalismo não é, e nem pode ser transformado em curso técnico, como defende o empoderado ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, ao negar a necessidade de diploma da formação superior para essa categoria de trabalhadores da comunicação. Ele confunde jornalista com menino de recados, um office boy de luxo. Em sua empáfia togada, Gilmar Mendes esquece que direito é uma questão de senso comum – para que diploma e carteirinha da Ordem, então?

Na contramão dessa vertente retrógada, tanto quanto arrogante, o jornalista é e deve continuar sendo um intelectual. Ninguém passa quatro ou cinco anos dentro de uma faculdade pública ou privada só para aprender a plugar um microfone na boca de um entrevistado e depois colocar entre aspas o discurso que ele não entendeu, e depois das aspas aplicar o indefectível verbo dicendi, que também não sabe declinar. Por exigir uma transversalidade de conhecimentos, o jornalismo não estaria mal situado entre as ciências sociais. Ainda mais, a escritura no jornalismo é a da literatura de não ficção; o jornalista é um escritor, um narrador, um contador de histórias. Para não ser um analfabeto funcional, o jornalista precisa ler mais do que apostilas do curso, mais do que lhe oferece a grade do curso.
Para não perder o foco: a convergência midiática, que é a preocupação das empresas, que pretendem unificar em um mesmo canal de comunicação várias possibilidades de expansão do conteúdo, não é, repito, uma questão jornalística, mas de uma engenharia de produção. Se o jornalista estiver “habilitado” a operar essa planta da nova fábrica de notícias, tanto melhor para ele e a empresa. Mas não podemos confundir o interesse empresarial com a formação do jornalista. O mundo está todo ou quase todo digitalizado. O grande problema é que as pessoas continuam a operar com o pensamento analógico. E preciso atentar para isso: a realidade muda instantaneamente, mas os processos mentais são mais lentos, estão impregnados de heranças culturais.

E agora, para não cansá-los mais: essa oportuna, mas ainda precipitada, preocupação com o “jornalismo digital” tem uma obsessiva necessidade de superar o “jornalismo impresso”. Eis um típico exemplo de herança cultural: como encarar esses “tempos transformação” de veículos, mais do que de linguagens, que exigem processos mentais diferentes? Não basta ser habilidoso em escrever com os polegares. Ainda há que rolar muito papel e tinta para impedir que essa esfinge sem rosto nos devore.

*É escritor, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Amazonas e membro da Academia Amazonense de Letras

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